Matéria: HOMENAGEM da edição: 212
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ÍNTEGRA DA ENTREVISTA DE CAROL SONENREICH
Jornal do Cremesp  n. 212/Abril 2005

Um dos principais e mais produtivos nomes da psiquiatria brasileira, Carol Sonenreich dirige o Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE). Nascido na Romênia e formado na Faculdade de Medicina de Bucareste, considera-se brasileiro por opção. Acompanhe, a seguir, a íntegra da entrevista especial que o especialista concedeu ao Jornal do Cremesp deste mês de abril:

Cremesp – Quantos anos o senhor falou que tem de Psiquiatria?
Carol –
Inúmeros. Comecei em Psiquiatria quando estava no 3º ano da faculdade. Entrei como externo no setor de Neuropsiquiatria, era um sistema diferente naquele tempo. Assim, desde o 4º ano de faculdade cursei Psiquiatria e continuei. Também falei da minha atividade no Hospital do Servidor Público Estadual. Entrei lá no final de 1963.

Cremesp – O senhor entrou como...
Carol –
Médico psiquiatra. Vim para o Brasil em 1960 e depois de um certo tempo de treino fiz a revalidação de título.

Cremesp – O senhor nasceu na Romênia?
Carol –
Sim. E lá me formei. No Brasil, a norma era fazer exames de revalidação que dependiam do regime da respectiva faculdade. Não consegui revalidar em São Paulo porque era muito caro, mas fiz isso em Recife. Eu já trabalhava, mas não tinha o título revalidado. Depois de dois anos fiz a revalidação do título de médico no Recife e voltei a São Paulo.

Cremesp – E na Romênia, o senhor já era psiquiatra?
Carol –
Sim. Quando você concluía o 3º ano havia, na Europa, um regime chamado Externato, seguido pelo Internato. O estudante era dispensado de freqüentar certos cursos da faculdade e trabalhava no hospital em alguma especialidade. Entrei na Neuropsiquiatria, lá escolhi a Psiquiatria dentro desse serviço e assim continuei. Quando vim para o Brasil em 1960, já havia trabalhado na Romênia vários anos, desde 1941. Mas precisava revalidar meu diploma.

Cremesp – E na Romênia o senhor se formou em qual escola?
Carol –
Na faculdade de Medicina de Bucareste.

Cremesp – Como aconteceu sua vinda para o Brasil?
Carol –
Moravam aqui no Brasil minha irmã, seu marido e filha. Quando consegui sair da Romênia vim para o Brasil a pedido deles, para vê-los. Não tinha intenção de ficar. Apenas sabia que a capital do Brasil não era Buenos Aires; não sabia mais nada do país. Vim para cá, fui recebido por eles e me convenci a ficar por aqui. Isso já tem 45 anos e nunca me arrependi da escolha que fiz. A partir daí, fui aceito numa Casa de Saúde em São Paulo, mas não tinha direito de trabalhar como médico, não podia legalmente assinar nada. Dois anos depois consegui, no Rio de Janeiro, equiparar meu diploma de colégio, e então procurei revalidar meu título de especialista. Não dava para fazê-lo em São Paulo, nem em Sorocaba, pois não tinha dinheiro suficiente. O que ganhava na Casa de Saúde era pouco. Só era pago para me sustentar enquanto fazia a revalidação. Mas, enfim, tive que ir para Recife. Foi um fato um tanto exótico.

Cremesp – Imagino. O senhor recém-saído da Romênia...
Carol –
Pois é, eu já estava há dois anos em São Paulo e já sabia um pouco sobre os paulistas que me receberam maravilhosamente, todos me dando um crédito inicial, me apoiando. Quando fui ao Recife, já tinha redigido dois artigos que até foram publicados em revista científica naquela cidade. Essas foram minhas primeiras publicações no Brasil. Uma delas era sobre a maconha, uma grande novidade que eu nunca tinha encontrado em minha prática médica. Um professor do Recife e sua equipe haviam publicado textos sobre a maconha. Minha primeira publicação brasileira foi divulgada na revista de Psiquiatria do Recife.

Cremesp – E o que o senhor achou da sua experiência em Recife?
Carol –
Recebia meu salário, mas ele era tão pouco que minhas condições de vida em pensões eram muito difíceis. Tinha 39 anos. Foi muito complicado, pois o tempo todo estava realizando exames de revalidação, me preparando, estudando. Eram voltados para estudantes e não para especialistas. Só que os professores confundiam estes limites. Lembro-me de um deles que até chegava a se exibir. Conheci lá no Recife o pessoal da Psiquiatria, que tinha a mesma boa vontade dos colegas aqui de São Paulo, embora nem todos os médicos de lá me tratassem como um colega.

Uma vez perguntei a um professor qual era a matéria para um exame e ele me respondeu “não leia nada porque de qualquer jeito você não vai saber urologia”. Mas, não queria mesmo saber sobre urologia, queria saber tudo o que os estudantes sabem. Lembro-me que, durante o exame, este mesmo professor falou comigo o tempo todo, mostrando o que ele sabia sobre Psiquiatria. Difícil resistir à oportunidade de se exibir um pouco.

Não posso deixar de dizer que tive apoio maciço de colegas, muita compreensão. Conheci no Recife pessoas muito interessantes, como Gilberto Freire, extraordinário, que me tratou como se fosse um interlocutor seu conhecido de longa data. Também conheci pessoas interessantes no âmbito da Psiquiatria. Publiquei, como lhe falei, o primeiro trabalho de Psiquiatria na Revista de Neuropsiquiatria de Recife. Sempre achei que a publicação de textos e estudos faz parte da profissão. Tenho artigos publicados, capítulos de livros e artigos escritos na Romênia, que não são muitos porque havia uma censura muito grande na época. Naquela época, não podíamos citar autores ocidentais, eles deveriam ser russos ou romenos, porque o país era praticamente ocupado, não apenas militar mas economicamente.

Cremesp – Apenas para deixar um pouco mais claro, conte brevemente a sua história. O senhor veio para São Paulo, depois foi ao Recife, e aí o senhor já começou a trabalhar no Hospital do Servidor Público?
Carol –
Fiquei no Recife durante uns cinco meses. De volta a São Paulo, me inscrevi imediatamente no Conselho Regional de Medicina e voltei a trabalhar em uma casa de saúde. Depois, num certo momento, em dezembro de 1963, um dos colegas de lá entrou no Hospital do Servidor e me disse “venha também”. Naquele tempo não havia concurso. Fomos submetidos a um exame psicológico, uma psicóloga nos examinou e achou que por mais loucos e ignorantes que éramos, dava para nos aprovar. Comecei no Servidor em dezembro de 1963.

Cremesp – Quantos médicos o senhor acha que formou? Quantos psiquiatras passaram pelas suas mãos lá no servidor? Com certeza passaram muitos pela sua supervisão...
Carol –
Não sei lhe dizer ao certo, mas podemos tentar contar. Não posso considerar os médicos do serviço como formados por mim. Em primeiro lugar, quando lá entrei não existia o serviço de Psiquiatria. Depois é que o serviço de Psiquiatria foi criado e entregue ao professor da USP. Foi ele quem estruturou esse serviço, com ambulatório e enfermaria no qual trabalhei. Foi nessa época que entrei no serviço de Psiquiatria.

Cremesp – O senhor ajudou a criar a enfermaria?
Carol –
Sim. Participei da formação, mas o chefe era Clóvis Martins, da USP. Ele instalou o serviço e Psiquiatria, chamou uma série de médicos excelentes com os quais tinha trabalhado na USP, pessoas de talento, de inspiração, de boa vontade, tudo que você imaginar de positivo. Foi desde o início uma equipe muito boa; infelizmente mais tarde a maioria deles se afastou. Martins era uma pessoa de muito mérito, fundou o serviço, mas não tinha um bom relacionamento com os colaboradores e por isso eles se afastavam. Um belo dia ele teve que nomear dois assistentes e fui um deles. Não sei, mas acredito que ele nem gostava de mim, mas me nomeou porque era estrangeiro.

O Brasil aceita muito bem os estrangeiros, muito mais do que outros países. Talvez estivesse com cerca de 39 anos na época da nomeação e então me dei conta de que Martins talvez soubesse que eu era um bom produtor de trabalhos. E ele gostava desse caráter acadêmico. Durante sua direção foram publicados dois volumes, um deles sobre psicoterapia, onde o texto mais extenso era meu. Enfim, ele teve esse mérito, criou o serviço e escolheu médicos excelentes (para atuar com ele). Um belo dia ele brigou - sempre brigava – com a diretoria e disse “me demito”. A direção aceitou sua demissão e colocaram-me para substituí-lo. Fiquei em caráter provisório no seu lugar. Como nunca fui bom em administração, nem sabia se era substituto ou titular, apenas exercia minha profissão. Depois de dois anos, João F. Mello,  o novo superintendente, me nomeou titular.

Cremesp – O Sr. foi nomeado diretor do Departamento de Psiquiatria?
Carol –
Diretor do Serviço de Psiquiatria. Chamava-se Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica. Em 1971 começaram a chegar os residentes, estes sim formados pelo serviço. Entre os residentes graduados, muitos se tornaram excelentes profissionais. 

Cremesp – O senhor tem uma idéia de quantos?
Carol –
Não sei lhe dizer, mas podemos multiplicar 30 por 5, porque são mais ou menos cinco por ano. No início tinha só um ou dois; depois começaram a aparecer mais, uns quatro ou cinco, e atualmente este número continua em quatro ou cinco. Mais os estagiários, com uma diferença de status. Em 1971 fiz aqui o doutoramento, embora não estivesse muito interessado nele porque já possuía o título de doutor da Romênia, em outro regimento. Pela primeira vez, em 1968, entrei em uma faculdade para dar aulas, em Santos. O professor era titular da Universidade de São Paulo e me nomeou assistente. Dava aulas uma vez por semana naquela cidade. Recomecei, então, na época, a escrever sobre alcoolismo. O professor titular insistiu para que o texto se tornasse uma tese e, assim, defendi essa tese. Não tinha interesse em fazer isso, queria que fosse um trabalho apenas, mas foi aprovada como tese na USP e recebi o título de doutor em Psiquiatria.

Depois de um certo tempo comecei a lecionar em Botucatu e lá fiquei como titular. Mais tarde prestei concurso e me classifiquei. Precisa transferir-se para assumi-lo. Mas, não quis mudar de São Paulo. A cátedra de Psiquiatria de Botucatu mantém uma ligação muito forte com a equipe do Servidor Público de São Paulo. Os residentes fazem dois meses de estágio aqui, todos os anos. A titular de Psiquiatria, única mulher com este título em todo o Brasil, foi nossa aluna na faculdade, depois fez residência no Servidor. Existem muitas professoras de Medicina no Brasil, mas a única titular de Psiquiatria é Florence Kerr-Correa.

Cremesp – E, atualmente, o senhor continua no Servidor ou exerce alguma outra atividade?
Carol –
Durante muitos anos exerci no ensino em pós-graduação. Na pós-graduação não há limites de idade do orientador, do professor. Criei um programa de pós-graduação, sensu-stricto, para a formação de mestres e doutores, lá no Servidor. Recentemente esta questão foi modificada porque o Ministério (da Educação) não nos deu o aval. As exigências eram muitas e nós, aqui no Servidor, não tínhamos condições de cumpri-las integralmente, horários, publicações.

Para a atividade de pós-graduação no Servidor existe uma Comissão de Pós-graduação dirigida pelo professor Goffi, cirurgião gástrico que foi diretor da faculdade de Medicina. Nos primeiro anos formaram-se médicos e mestres, mas depois não houve como cumprir as condições impostas pelo Ministério. Por exemplo, eu cumpria quatro horas por dia; outros colegas cumprem um horário maior, mas pessoalmente não podia fazer diferente. Com salário pequeno, tinha de trabalhar em outras coisas, em consultório e em outras instituições.

Cremesp – E o senhor manteve consultório também durante esse tempo?
Carol –
Sabe qual é meu salário no Servidor? Se me permiti durante todo esse tempo comprar discos e livros, viajar uma vez por ano, foi com o trabalho de consultório. Gosto de atender em consultório, embora o contato com alunos e colegas traga mais realizações e seja muito mais complexo.

Cremesp – E qual corrente da Psiquiatria o senhor se identifica mais?
Carol –
Se não publicar eu lhe conto... (risos) Tive uma formação clássica de médico. Me interessei muito pela psicanálise freudiana, . Rompi com Freud em um certo momento porque não correspondia nem às minhas idéias e nem à minha prática, que era basicamente prática de hospital.

Tive que fazer retificações no pensamento freudiano porque não respondia a certas necessidades minhas. Precisei me afastar dessas teorias. Não foi uma atitude fácil, porque tinha investido muito tempo nisso. Em um certo momento pensei “não vejo resultados, mas vou esperar porque não sou ainda suficientemente bom”. Percebi, então, que essa era uma maneira particular de me agarrar àquela posição.  As minhas objeções estavam fundamentadas em princípios. Me afastei da noção do inconsciente, o inconsciente assim como aparece em Freud.

Precisei sair em busca de outras fontes, talvez não tão novas, mas diferentes. Encontrei, especialmente nos existencialistas, uma nova orientação. Não sei se entendo muito bem o que os existencialistas propõem aplicado à Psiquiatria; assim, fiz contribuições próprias. Por exemplo, a um certo momento decidi que o conceito de esquizofrenia que todo mundo usa, não serve. Escrevi, me comprometi com isso. Desde 1913, quando este conceito foi criado, vem sendo muito praticado. Decidi substituí-lo e criei algumas propostas para minha atividade clínica.

Embora tivesse certas propostas próprias, para várias questões, não entendia claramente o que havia em comum entre os meus conceitos de delírio, de alcoolismo, de neurose, de depressão. Depois entendi a base comum, a estrutura. Atualmente tenho uma visão clara do que é característico, por isso afirmo que é uma doutrina, com um encaixe pessoal. O que escrevo agora é uma tentativa de esclarecer todos estes pontos. Os conceitos “quase” oficiais não se aplicam, na prática.

Na Psiquiatria existem duas classificações oficiais das doenças, uma elaborada pela Associação Americana, o código DSM IV, e outra que segue o sistema europeu, patrocinado pela Organização Mundial de Saúde, chamado CID 10. Para fins estatísticos devemos nos colocar conforme a Classificação, embora todos saibam que os princípios que a determinaram estão equivocados. Mesmo discordando desse sistema, como é oficial, preciso utilizá-lo. Mesmo acreditando que a classificação de diagnósticos só serve para compor índices estatísticos, devo aplicá-lo porque não trabalho, não somente no serviço público, quando escrevo uma receita, uma recomendação. O paciente pode solicitar o seguro de saúde fundamentado naquela prescrição.

A grande maioria dos autores concorda que essa Classificação deve ser modificada, que o sistema é deficiente. O mais difícil é concretizar propostas para mudar o que não serve. O problema maior é que para as revistas publicarem um artigo seu, você precisa seguir certas normas.

Conseguimos evitar esse impasse no Servidor, em primeiro lugar porque nossa revista foi concebida para divulgar o pensamento do autor, não importa se ele está em conformidade (ou não) com os outros. Claro que somos uma revista pequena em termos de representação; existem revistas científicas com um poder muito maior de difusão, que recebem apoio daqueles que fazem publicidade, que se sustenta muito mais com a publicidade do que com vendas.

Acredito ser mérito do Servidor esta outra visão da publicação de artigos em nossa revista. Durante um tempo fazíamos um simpósio, cobrávamos as inscrições e com esse dinheiro comprávamos papel, pagávamos a revista. A um certo momento não deu mais, houve a crise do petróleo, a publicação se tornou cara demais . Agora o hospital sustenta a publicação, o que cria outras dificuldades. Por outro lado, é a única revista que faz esse tipo de trabalho. Por isso, acredito que vale a pena suar um pouco, se aborrecer e até atrasar, mas continuar prestando esse serviço.

Existe um index oficial de revistas científicas que deveríamos seguir, mas nunca correspondemos a ele, nem tampouco queríamos. Se fizéssemos conforme as normas desse index seria melhor não publicarmos. Jamais tive um artigo recusado em toda a minha carreira. Também é verdade publiquei pouco em revistas internacionais e considero esse fato como uma das minhas falhas. Mas, sempre acreditei que deveria escrever em português, publicar em São Paulo e fiz isso. Às vezes, quando enviei artigos para as revistas internacionais, nunca recebi uma recusa. Entretanto, acho que se tivesse me submetido a certas normas teria obtido melhores resultados. Doze anos depois de publicado meu livro sobre alcoolismo (1971), apareceu uma capa da revista Time Magazine com a seguinte chamada: “revolução no campo do alcoolismo”. O autor G. Vaillant, tinha publicado.

Uma pesquisa muito melhor do que a minha, muito mais rica.Mas, com as mesmas conclusões, com uma só diferença. Mas ele não sabia do meu trabalho, pois ele nunca foi publicado nos Estados Unidos. Na época um colega enviou uma carta para a Time Magazine parabenizando a revista por estar valorizando o trabalho do médico americano, mas informando que há 12 anos a equipe brasileira já trabalhava com essas idéias fundamentadas em pesquisas da nossa equipe. A revista publicou a carta e o seguinte comentário: “estamos muito agradecidos pela sua carta, mas assim acontece na ciência, uma descoberta se faz muitas vezes em vários lugares...”

Tudo o que o pesquisador americano publicou, foi dito por um grupo de paulistas 12 anos antes. Uma colega chegou a me escrever sobre a justificativa da Time Magazine, contando que primeiro ficou com bastante aborrecida, mas depois se deu conta de que teve a sorte de aprender tudo aquilo quando residente, ou seja, sentiu-se aliviada por não precisar esperar até 1980 para saber sobre as conclusões do trabalho sobre alcoolismo.

Cremesp -  Quais nomes o senhor cita?
Carol –
Por exemplo, Ludwig Binswanger, contemporâneo de Freud. Embora tivessem rompido em um certo momento, continuaram amigos. Quando Freud morreu Binswanger foi convidado para fazer o discurso em sua homenagem. Ele era suíço, um alemão suíço. Mas existem vários seguidores de suas idéias, inclusive aqui no Brasil. O pensamento existencialista é bastante difícil, mas não mais difícil do que a psicanálise freudiana. Em São Paulo existem cursos de ensinamento da psiquiatria existencial, embora muito menos populares do que os de psicanálise freudiana, lacaniana.

Cremesp – Como o senhor vê a Psiquiatria hoje?
Carol –
Acredito que a Psiquiatria está realizando tentativa “permanente” de progresso. A Psiquiatria é um ramo da Medicina. Sou médico e exerço uma psiquiatria médica. A Psiquiatria que se mantém médica não significa que é igual à Ortopedia: penso de uma certa maneira sobre meu joelho e penso de outra maneira sobre o meu cérebro. A psiquiatria oficial está sendo mais dirigida para o cérebro do que para a mente. Considero esta abordagem um equívoco. Não deveria haver separação entre mente e cérebro. Entender a mente como produto do cérebro é reducionismo.

Acredito que a Psiquiatria deveria fazer essa abordagem tanto do ponto de vista do cérebro como da mente. O alcoolismo, por exemplo, não é uma doença provocada somente pelo efeito químico do álcool sobre os neurônios; é também uma doença provocada pelo modo de viver (do paciente). Ser alcoólico representa viver de um modo diferente. O estudioso deve abordar a questão de ambos os pontos de vista. O tratamento que fazemos hoje do alcoolismo e da, assim chamada, esquizofrenia, é idêntico àquele que fazíamos há 50 anos atrás. Para progredir, temos que criar conceitos e métodos de trabalho adequados.

Cremesp – Existe, na sua opinião, uma tendência atual de medicalização de pelo menos uma parte da psiquiatria? Talvez seja nesse sentido que o senhor citou sobre a separação de cérebro e mente...
Carol –
Acredito que seja uma medicalização mal compreendida. Como já disse, a “minha” Psiquiatria é um ramo da Medicina: sou médico dos distúrbios mentais. Em nenhum momento vamos imaginar que se meu cérebro estiver fora de função, vou ter uma mente. Acho que a questão principal a ser levantada é: o que nós estamos estudando? Será muito mais de interesse da economia do que do pesquisador estudar essas coisas? Não é apenas a indústria farmacêutica que favorece o estudo e a aplicação de um medicamento.

Acredito no falso dilema entre o orgânico e o psíquico. Não deveria ser feita essa separação. Este é o tipo de Psiquiatria que exerço. A cúpula da USP, a cúpula da Escola Paulista, a cúpula da Santa Casa, embora não façam as coisas como eu, nunca deixaram de me ouvir e me deram todas as chances. Se consigo convencer ou não, isso depende tanto de mim quanto deles. Absurdo é confrontar a Psiquiatria com a Psicologia. Os psicólogos estão zangados com o Ato Médico, acham que a Psiquiatria é uma invenção da burguesia. A Psicologia deve abordar com seus próprios recursos, com seus próprios instrumentos. Os meus instrumentos são da Medicina.

Cremesp – E a mídia e a questão da luta antimanicomial?
Carol –
É bom lembrar que, no Brasil,  os dirigentes de saúde mental, os governantes sempre foram a favor dessa luta. Parece uma posição de esquerda? Mas, esta política foi sempre a dos países mais ricos do mundo. Também dizer  que não há doença mental é uma idéia de psicólogos, que não sabem do que estão falando quando abordam esse assunto, ou não querem saber.

Cremesp – E por que o senhor não concorda com a luta antimanicomial?
Carol –
Porque não tem sentido. Não concordo mesmo, mas formei uma unidade psiquiátrica em hospital geral, conferi peso principal ao ambulatório e não à enfermaria. A “luta anticomial” só fechou vários hospitais psiquiátricos. Deveriam ser fechados os ruins, que não poderiam ser desenvolvidos ou melhorados. Ao invés de fazer isso, colocaram o doente na rua. O que fizeram no Juqueri a um certo momento foi colocá-los na rua e alguns desses pacientes foram transferidos para hospitais particulares. Era interesse dessa política enriquecer hospital particular? Porque em última análise foi exatamente isso que foi feito. Eles afirmam que não existe doença mental, portanto, não existe a necessidade de criar ou manter um manicômio.

No Brasil existe, pelo que sei, uma experiência de transformação, acho que em uma instituição em Barbacena transformada em um bom hospital, com tratamento ambulatorial, tratamento na comunidade, visitas domiciliares. Não justifica fechar uma instituição como essa porque se gasta dinheiro com isso. O que fariam com esse dinheiro? Ambulatórios? A possibilidade de inaugurar Centros (de tratamento psiquiátrico) me parece um fato bastante bom, mas não significa defender a luta antimanicomial. Os Centros de tratamento psiquiátrico deveriam ser implementados sem o fechamento de hospitais. São instituições complementares.

Os ingleses fizeram a mesma coisa no tempo da Margaret Tatcher: fecharam hospitais, os pacientes foram deixados nas ruas e nas prisões. Eles não eram perigosos, não faziam coisas graves, mas eram considerados delinqüentes, pois – mesmo sem saber – não respeitavam as leis de trânsito, cometiam pequenos delitos.  Eram então colocados na prisão e não tinham atendimento enquanto prisioneiros porque esse tipo de atendimento dependia exclusivamente do Ministério da Saúde.

Quem deveria ser ouvido nesse caso? Seriam os doentes, as famílias dos doentes. Os mais destacados são decididamente contra a luta antimanicomial, que somente priva os pacientes do tratamento e acompanhamento correto. Os doentes mentais não são mal intencionados. Pergunte à mãe de um esquizofrênico, pergunte à esposa de um alcoólico, pergunte aos drogados. Mas, quando não existe nenhum tratamento, veja como isto causa impacto na economia, na segurança, etc.

Cremesp – O senhor chegou a abordar a questão da Psicologia e da Psiquiatria. O senhor considera que exista até um certo conflito entre esses profissionais? Quais os limites de ação dos psicólogos?
Carol –
Este tipo de conflito não deveria existir. No Servidor, desde que nós passamos a trabalhar no Serviço de Psiquiatria, atuamos com psicólogos na proporção de um profissional para cada dois médicos. Com fatos relacionados à conduta do paciente, o profissional de Psicologia sabe muito bem trabalhar, lidando com conhecimentos filosóficos e psicológicos. Agora, como repercute o pâncreas sobre a mente, o psicólogo não tem como saber. Em hospital geral fazemos a interconsulta. Temos pacientes que são encaminhados a serviços de doenças do fígado, do pâncreas ou do sistema nervoso. Esses quadros são campo da Medicina. Sem dúvida, a Psiquiatria deve muita à Psicologia, que enriquece o conhecimento do ser humano e da relação humana.

O problema maior é quando surgem psicólogos que acreditam que irão ter mais clientes ao afirmar que não existe doença mental e que isso é uma invenção dos médicos. Isso ocorre com bastante freqüência. Em função do menor tempo de formação, acredito que existam mais psicólogos do que médicos, mesmo porque é até mais fácil formar-se em Psicologia do que em Medicina. Mas é importante explicar que se existe uma certa turbulência esta não é proveniente da Psicologia em si, mas de alguns psicólogos. Me parece que a presidente do Conselho Regional de Psicologia está tomando atitudes de hostilidade à Medicina como se estivéssemos lutando pelo mercado (de trabalho).

Nunca tivemos dificuldade de relacionamento com os psicólogos (no Hospital do Servidor). Havia muito mais atrito de relacionamento entre as próprias psicólogas do que entre psicólogos e médicos. Antes existia um Serviço de Psiquiatria e um Serviço de Psicologia Médica. Nos esforçamos durante não sei quanto tempo para que os psicólogos oferecessem aos pacientes um serviço diferenciado de atendimento e que não fizesse parte da Psiquiatria. A idéia era conviver profissionalmente, trabalharmos no mesmo espaço. No ano passado conseguimos que a equipe de trabalho fosse oficializada, ou seja, chefe da equipe de psicologia é uma psicóloga, e não um médico. Isso vem demonstrar, claramente, nossa capacidade de boa colaboração.

Cremesp – O que, na sua opinião, a Psiquiatria nos reserva para os próximos anos?
Carol –
Acredito que são cada vez mais claras as vozes daqueles que procuram progresso. Todos dizem que precisamos de novidades, inclusive os mais conservadores, mas agora todos estão se dando conta de que devem participar dessa novidade. Novidade no sentido de adequação, eficácia. Fico feliz quando estou curando uma proporção de pacientes que não curava há 20 anos, a 10 anos atrás. Atualmente encontramos uma variedade de remédios, de tratamentos, mas existe a consciência de que estamos muito longe do que é necessário. Acredito que novas contribuições estão muito mais manifestas. Estou muito contente de saber que o Hospital das Clínicas realizou uma notável ampliação do Serviço (de Psiquiatria). Porque temos condições de trabalhar não apenas na base do remédio. Também acredito numa coisa muito boa: o pessoal da Escola Paulista, não sei a quantos anos atrás, mas vamos dizer uns 20 anos, tinha apenas um professor de Psiquiatria e atualmente tem quatro, sendo que um deles é psicólogo. A Escola Paulista de Medicina compreendeu que na cátedra de Psiquiatria havia lugar para um psicólogo, entendeu-se que este profissional aumenta as chances da Psiquiatria trabalhar, criar novidades e de ser compreendida pela população.

Cremesp – Existe algo além de Freud que antes o senhor defendia ou pensava, mas que atualmente o senhor não defende ou pensa mais?
Carol –
Evidentemente. Tenho uma proposta pessoal para definir a depressão, não pela descrição formalmente usada. Não vou fazer diagnóstico com base em fundamentos pré-formulados, vou fazê-lo porque serve. Uma coisa que também é muito mais teórica e que lhe disse antes, mas não insisti porque é difícil de ser traduzida em poucas palavras, é a questão de cérebro e mente. Não separo cérebro de mente, são duas maneiras de ver uma realidade. Postulo que existe uma realidade independente da minha, mas a minha abordagem pode mudar. Os físicos fizeram o mesmo: alguns mostraram que a luz é feita de ondas, com experimentos, e outros provaram, também com experimento, que a luz é composta por partículas. Então se colocou a questão: qual é a realidade? O que conta é a maneira de encarar . A realidade é uma e o discurso é outra coisa. Todo mundo fala de átomos. Porém, significativos físicos perguntam: o átomo exite? Ou é um conceito inventando pelos físicos para estudar o assunto? O que é átomo? Foi representado como um corpúsculo, um núcleo circundado por várias órbitas nas quais giram elétrons. Mas outros o pensam como fórmulas matemáticas.

Antigamente, meu pensamento era rigorosamente materialista, matéria gerando energia. Agora estou me dando conta de que para entender certos fatos devo pensar o cérebro como um processo. Quando me refiro ao cérebro, não falo dele do ponto de vista da matéria, falo como um processo. Cérebro pode ser entendido como um processo. O que me interessa para minha ciência e para minha prática de saúde é visualizar o cérebro como um processo. Isso é um fato que tive que aprender.

Cremesp – O que o senhor diria que sempre pensou e que continua pensando até hoje?
Carol –
Que a Medicina, o médico, tem um mandato social. Tenho plena consciência de que o que faço é, porque a sociedade me reconhece. Ele exige um documento, um diploma. Devo ser responsável perante a sociedade. Meu mandato é um mandato social. A doença mental é a perda da capacidade de fazer escolhas, de conviver, de se relacionar. Acredito que esta é uma constante a se considerar. Não sou médico porque o meu pai era, mas porque a sociedade me dá esse mandato e ela me pede que, em troca, eu corresponda a certas condições.

Cremesp – E qual seria a sua mensagem aos médicos, aos psiquiatras?
Carol –
Entre tantas as mensagens que já enviei aos colegas, diria que a vida do indivíduo não depende unicamente do cotidiano e das aventuras, depende muito das leituras. Quando leio, ou até quando assisto a um filme, sempre me envolvo, analiso se ele me diz alguma coisa ou não me diz nada. Essa herança da cultura universal faz parte de mim, não é uma coisa separada. Acho que escrever, ler, enriquece o indivíduo. Sou assim como sou e penso assim não somente porque minha mãe me deu leite bom ou mau. Nem sou assim apenas por causa dos meus genes, mas por essa participação minha na cultura universal.

Cremesp – Quantos idiomas o senhor fala?
Carol –
Falo mal vários idiomas. Nasci na língua romena, falo português o suficiente para nos entendermos, mas não estou satisfeito com meu sotaque, acho que nunca vou escapar dele. Falo francês sem dificuldade; não falo inglês, mas leio fluentemente e sou mais capaz de entender um interlocutor, especialmente os ingleses, mais do que os americanos. Mas, se a senhora me disser “se o senhor não falar inglês eu lhe dou um soco no nariz”, vou falar inglês porque estou sendo obrigado. Mas não me sinto à vontade. Não tentaria falar espanhol porque  até os latino-americanos, dizem que não entendem o brasileiro, embora o brasileiro entenda o que eles falam. Não gosto de falar em outro idioma se não vou poder dizer o que penso, empobrecendo o pensamento em função do idioma.  Mas quando é necessário.

Cremesp – E o senhor já voltou à Romênia?
Carol –
Nunca. E nunca vou voltar. Não tenho nenhuma vontade de voltar. Me dei conta quando comecei a viver aqui, e conheci os brasileiros, de que as minhas dificuldades lá não eram legítimas. Aqui tive muitas vezes fracassos, mas por minha causa. Quando faço alguma coisa que os outros não aceitam, eles me punem e se afastam. Quando faço alguma coisa que corresponde, as pessoas me tratam bem. Lá estava marcado para morrer.

Cremesp – O senhor era opositor ao regime?
Carol –
Não. Fui participante do regime. Quando era muito jovem, o regime vigente no país era o fascista. Entrei no movimento rebelde e tive naquele tempo a convicção de que estava no caminho correto. Depois, por ter alguma habilidade de relacionamento me tornei, não um líder político, mas um indivíduo com uma posição destacada. Então me dei conta de que o caminho que seguia estava errado. Acreditava numa impostura servia um imperialismo soviético, que mal disfarçava seus interesses.

Optei por fazer uma Medicina científica e, como tal, tenho que admitir que devo comunicar-me e o meu pensamento deve ser conhecido e julgado pelos outros. Proponho trabalhar nesta base e esta proposta implica que tenha que lhe dar elementos para me compreender. Quero que meu interlocutor saiba o que eu digo, que tenha elementos para fazer a sua escolha. Isso aprendi com os existencialistas.

Cremesp – O senhor morou na França por um período?
Carol –
Desde que comecei a atender em consultório, aqui no Brasil, passava uma parte das minhas férias em Paris, e uma outra parte em outros lugares do mundo. Mas a França sempre foi minha principal fonte de abastecimento.

Cremesp -  O senhor poderia, para finalizar, resumir o que acha que seria sua maior contribuição para a Psiquiatria?
Carol –
Gostaria de ter contribuído com certos conceitos propostos. Depressão, Dependência, Demência, Delírio. Acho que que devia fazer mais um esforço para divulgar esses conceitos. Portanto, essa contribuição acredito que está expressa na revista que fizemos, cuja proposta é tornar-se um instrumento de propagação.

No meu trabalho de equipe, acredito que a principal idéia que tentei defender e praticar é a de que se pode fazer do trabalho uma coisa boa e prazerosa e não uma arena de luta contra os colegas ou contra qualquer outra pessoa, apenas porque eles me incomodam. Acho que criei lá no Hospital do Servidor um clima de trabalho diferente. Uma vez uma secretária fez um comentário: “esse serviço não tem chefe”... Respondi que não tinha a menor intenção de chefiar. Quero orientar esse serviço com a esperança de não dar a impressão de ter chefiado.


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