16/10/2003

Projeto de Lei 1.051 (2003)

Proíbe a prática da "psicocirurgia" no Estado de São Paulo

A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO decreta:

 

Artigo 1º - Fica proibida a prática da psicocirurgia no Estado de São Paulo.

Parágrafo Único - Entende-se como "psicocirurgia" toda a intervenção cirúrgica que envolva a destruição ou a remoção irreversível de partes do cérebro, com o objetivo de promover alterações de comportamento no paciente.

 

Artigo 2º - A não observância dos preceitos desta lei importa ao médico o pagamento de multa, no valor de 1000 (mil) UFESPs, sem prejuízo das demais cominações legais cabíveis.

 

Artigo 3º - As despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta de dotações orçamentárias própria, suplementadas se necessário.

 

Artigo 4º - Esta lei entra em vigor na data da sua publicação.

 

JUSTIFICATIVA

 

As chamadas "psicocirurgias" consistem em procedimentos cirúrgicos invasivos, empregados com o objetivo de promover alterações de comportamento em paciente psiquiátricos. A psicocirurgia consiste na destruição de partes do cérebro, que estariam supostamente associadas a comportamentos que se deseja eliminar, como a agressividade, depressão, epilepsia e outros. Em uma dessas cirurgias, tecnicamente conhecida "estereotaxia" prende-se, com parafusos, um halo metálico na cabeça do paciente, introduzindo então uma broca de aproximadamente dois milímetros de diâmetro no crânio do paciente, que perfurado, recebe um estilete de ponta incandescente, à temperatura de 80 graus centígrados. O metal destrói a parte do cérebro escolhida pelo médico.

 

Procedimentos deste tipo, invasivos e cruéis, eram comuns no século XIX e no início do século XX, quando a Psiquiatria e a Psicologia, recém instituídas como ciência, surgiram destinadas a promover, utilizando as novas técnicas de intervenção cirúrgica descobertas, a chamada "adaptação social" de seres humanos que apresentassem "desvios de comportamento". As inúmeras crueldades empregadas no atendimento à doença mental possuem muitos relatos na história da Ciência, descritas, dentre outros, por autores como Michel Foucault (1972) e Erving Goffman (1961).

 

A lobotomia - cirurgia que destrói parte da região frontal do cérebro, separando os dois hemisférios do córtex cerebral com a finalidade de alterar comportamentos - viveu seu apogeu na década de 40, sendo utilizada em diversos países. Alvo de intensas críticas, e questionada sobre sua eficácia, a lobotomia foi legalmente banida em vários países na década de 70.

 

A humanização no atendimento à doença mental vem sendo progressivamente conquistada, por meio das lutas do movimento antimanicomial no país, apoiadas por descobertas na área da Psicologia e da Psicanálise, que analisam o surgimento e o tratamento dispensados à doença mental à luz do contexto social onde estamos inseridos, produtor de sofrimentos inerentes ao próprio desenvolvimento da civilização humana.

 

Embora fosse de se esperar que as psicocirurgias estivessem completamente extinguidas, ainda hoje elas são permitidas no país, embora haja a necessidade de aprovação prévia do procedimento por um grupo de especialistas indicados pelo Conselho Federal de Medicina (resolução 1408/94).

 

Nem esta determinação, porém, vem sendo atendida, conforme denúncia publicada pelo jornal "A Folha de São Paulo", no dia 28 de setembro de 2003. A reportagem mostra que o procedimento é comum entre neurocirurgiões brasileiros, sem que haja qualquer comunicação ao Conselho. A prática da psicocirurgia envolve inclusive profissionais renomados, vinculados a centros de excelência em pesquisa e ensino, chegando a ser defendida em congressos científicos da área.

 

O Presidente do CRM em São Paulo afirma que o órgão não tem sido consultado para a realização de nenhuma psicocirurgia. De fato, segundo o neurocirurgião Luiz Fernando Martins, a ausência de consulta a CRMs é comum, não sendo restrita a Goiás, onde a prática aparece mais difundida: "Não só eu, como nenhum cirurgião de São Paulo, de Belo Horizonte, do Rio Grande do Sul, consultou nenhum conselho regional para fazer essa cirurgia."

 

Os números são alarmantes. Em Goiânia, médicos declararam ter atendido, ao todo, cerca de 330 doentes mentais - incluindo crianças - e alguns com mais de uma cirurgia. No Rio de Janeiro, outro médico afirmou operar "três ou quatro" pacientes por mês. Médicos de São Paulo também afirmaram, em entrevista, realizar cirurgias do gênero, operando pacientes com epilepsia, mal de Parkinson ou dores "associadas" a algum transtorno mental. As cirurgias psiquiátricas são pagas pelo SUS sob os mesmos códigos aplicados às cirurgias feitas para tratar doenças que não configuram transtorno mental, como epilepsia ou mal de Parkinson: "cingulotomia" ou "destruição de estrutura cerebral profunda". No sistema público, uma cirurgia psiquiátrica é avaliada em R$ 6 mil. Em clínicas particulares, custa entre R$ 10 mil e R$ 18 mil.

 

Um emocionante caso envolvendo um paciente operado, e sua família, é relatado pela reportagem:

 

A família de A., 21, lembra o dia em que ele foi submetido a uma cirurgia psiquiátrica numa clínica de Goiânia, no ano 2000, como um momento de grande expectativa e esperança de melhora. Mas o sonho terminou muito rapidamente. "Ele só ficou 24 horas no hospital. Quando voltou, ficou uns dez dias com a cabeça inchada, quase sem comer, só bebia água, sem tirar os pontos", conta a mãe, C., 48, uma pequena comerciante da Vila Concórdia, na periferia da capital de Goiás. Depois do período de recuperação, enfrentado pela mãe com remédios caseiros, A. começou a apresentar os mesmos sintomas usados para justificar a cirurgia: muita agitação e lances esparsos de fúria, quando chegou a quebrar portas e o vaso sanitário. A mãe disse que ele "voltou a ser como era antes" da operação. O pai, A., 50, discorda, acha que o filho "piorou". O casal não sabe ao certo do que o filho sofre, porque não tem nenhum exame em casa. Desde muito pequeno ele é assim - por não pronunciar frases inteligíveis, jamais estudou. A mãe disse que ouviu um psiquiatra de um posto de saúde chamá-lo de "autista". O autismo é um fenômeno patológico que "desliga" a pessoa da realidade exterior e fabrica mentalmente um mundo à parte. Pessoas ligadas ao médico que fez a cirurgia procuraram depois a família para propor uma cirurgia "de reparação" - na verdade, os médicos costumam tentar uma nova psicocirurgia em outra parte do cérebro, para ver se surte efeitos positivos. A família não quis tentar mais nada, descrente dos resultados da primeira cirurgia e "com medo de operar de novo". Ficou tão desapontada com a tentativa que nem sequer guardou o nome do cirurgião. Uma psicóloga que atendeu A. meses após a operação, ouvida pela Folha, disse que a cirurgia foi feita depois que uma vizinha recomendou e uma funcionária da clínica asseverou que as chances de sucesso eram grandes. A família confirma. "Falaram que ia dar certo", conta a mãe. Como era tudo pago pelo SUS, não custava nada tentar. Hoje A. é mantido pela família amarrado pela perna por uma corda atada a um gancho preso à parede. A mãe se martiriza com a cena, mas não vê outra saída. Um dia A., que é forte, escapou da sala, ganhou a rua e quase foi atropelado por um ônibus. Em casa, os pais dizem lhe dar amor e atenção. "Muitas famílias abandonam seus filhos, nós não, nós o queremos", conta C. Nu, deitado num colchão fino estendido no chão da sala, A. esconde a cabeça numa lona verde quando estranhos se aproximam (ele não pode usar roupas porque as rasga e pode até engolir as tiras). A salvo dos olhos curiosos, entoa, com a voz fina, uma canção sem letra e ritmo, mas que parece alegre. O som invade a casa e anima a mãe. "Ele está feliz."

 

Em caso único no país, o Ministério Público do Paraná conseguiu evitar, em Curitiba, uma cirurgia psiquiátrica prestes a ocorrer numa paciente de 23 anos de idade; uma mulher que há dez meses era considerada um caso sem cura, para quem a única solução seria uma cirurgia no cérebro, e que hoje escreve poesias, desenha e se relaciona com outros pacientes. A cirurgia, neste caso, pôde ser evitada graças à denúncia de uma psicóloga, e porque a paciente, após esclarecida sobre os riscos da cirurgia, não deu anuência para sua realização.

 

Manisfestação pública do Presidente do Conselho Federal de Psicologia mostra a preocupação da categoria diante da perpetuação de práticas tão desumanas. Ele defende a necessidade de que qualquer intervenção na área da saúde leve em conta o bem-estar da pessoa submetida a tratamento, e de que padrões éticos sejam respeitados. As chamadas psicocirurgias, no caso dos portadores de sofrimento psíquico, além de não apresentarem garantias de melhora e de serem irreversíveis, representam agressão ao direito da pessoa aos seus pensamentos e sentimentos.

 

Diante do exposto, solicitamos o apoio dos nobres pares para a aprovação desta propositura.

 

Sala das Sessões, em 9/10/2003

 

a) Enio Tatto - PT

 

Referências Bibliográficas:

 

FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo, Perspectiva, 1972.

GOFFMAN, E. Asylums: essays on the social situation of mental patients and other inmates. Garden City, N.Y. Doubleday, 1961.


Fonte: Diário Oficial do Estado; Poder Legislativo, São Paulo, SP, n. 195, 14 out. 2003, p. 11-2  

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