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    22-10-2024

    Ética em Perinatologia

    Cremesp discute falta de autonomia de obstetras e neonatologistas em evento inédito

    A falta de autonomia dos médicos obstetras e dos neonatologistas no momento do parto, frente às inúmeras pressões para inibir a prática da Medicina, e a necessidade de respaldar seus conhecimentos técnicos e científicos, foram os grandes destaques do 1º Simpósio de Ética em Perinatologia, promovido pelo Cremesp em 19 de outubro último, na sede da autarquia. O debate – presidido pelo presidente da Conselho, Angelo Vattimo – contou com a experiência de diversos conselheiros da Casa e do Conselho Federal de Medicina (CFM), de professoras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da Universidade de São Paulo (USP), além dos juristas Angela Gandra, Janaína Paschoal e Fernando Capez e do delegado da Polícia Civil, Tiago Fernando Correia, e de Carlos Magno Michaelis Junior, superintendente da Procuradoria Jurídica do Cremesp. 

    Para Vattimo, “existem muitas pressões que podem criar problemas para o feto ou recém-nascido e a gestante, pois existe um ativismo que, na prática, está impedindo o médico de exercer sua profissão para a qual estudou tantos anos para aprender as técnicas corretas, com evidências científicas”. Os médicos estão quase sendo expulsos das salas de cirurgia durante os partos, acrescentou. “Não aceitamos o termo violência obstétrica, embora possa haver algumas exceções; até procedimentos necessários à manutenção da vida da mãe e do recém-nascido ou que evitam sequelas estão sendo classificados como violentos”, ressaltou o presidente do Cremesp.

    Plano de parto

    O plano de parto – documento que detalha as preferências e desejos da gestante em relação ao nascimento do bebê e aos cuidados médicos associados –, embora recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tem sido irrealista e, algumas vezes, fantasioso, em decorrência da propaganda que mostra como apenas mágico e idílico este momento tão cheio de desafios reais à saúde da mãe e do filho, concordaram de forma unânime os participantes da primeira mesa-redonda, intitulada “O plano de parto: adequação à Lei e exequibilidade nas instituições – da expectativa à realidade”.

    Além de muitas vezes irreais – algumas gestantes solicitam, por exemplo, parto na água, quando o hospital não tem banheira –, o plano de parto é apresentado ao médico durante um plantão, até de madrugada, quando ele nem tem tempo de lê-lo, afirmaram os debatedores. A presença de doulas e de um familiar é aceitável, mas a maior responsabilidade, entretanto, é do médico, e ele precisa zelar pela segurança da mãe e do feto; por isso, deve se sentir livre para tomar as iniciativas que julgar as mais adequadas.

    Uma sugestão para enfrentar a pressão exercida sobre os obstetras e neonatologistas foi que a gestante deve assinar um documento de consentimento informado específico, relatando as condutas médicas que deseja recusar. Além disso, os médicos devem fazer um prontuário médico detalhado caso seja necessário um procedimento diferente do que consta na manifestação de vontade da gestante.

    A mesa-redonda sobre o plano de parto foi composta por: presidente: Maria Alice Saccani Scardoelli, vice-presidente do Cremesp); moderadora: Flavia Bassanezi, vice-corregedora do Cremesp, conselheira responsável pela Câmara Técnica de Medicina Legal e Perícias Médicas do Cremesp e membro da Câmara de Ginecologia e Obstetrícia do Cremesp; debatedores: Elzo Garcia Junior, conselheiro do Cremesp, médico pediatra e responsável pela Câmara Técnica de Pediatria; Fábio Sgarbosa, conselheiro do Cremesp e membro da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia do Cremesp; Angela Gandra, jurista e professora de Filosofia do Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie; e Christianne Cardoso Anicet Leite, coordenadora das Delegacias do Interior do Cremesp, médica ginecologista/obstetra e membro da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia.

    Episiotomia

    No Brasil, segundo relatado no debate “Episiotomia: lesões perineais graves evitáveis e suas consequências médicas, éticas e legais”, as taxas do procedimento variam, mas têm mostrado uma tendência de queda ao longo dos anos. No Sul, por exemplo, caiu de 70,9% em 2007 para 19,4% em 2019.

    O procedimento apresenta riscos que podem ser graves para a gestante, como incontinência anal ou urinária, afirmaram os participantes da mesa-redonda. Por isso, é necessário que o médico saiba reconhecer a lesão esfincteriana no momento do parto para reparar a lesão ele mesmo ou, havendo possibilidade, solicitar auxílio de um coloproctologista. “É melhor realizar a episiotomia do que protelar e ter laceração perineal”, recomendou-se. Contudo, há gestantes que chegam ao hospital achando que episiotomia é crime, afirmou uma debatedora.

    A importância do relato detalhado no prontuário médico em relação à necessidade de todos os procedimentos foi novamente enfatizada. É importante também, acentuaram os participantes do debate, que o médico questione a gestante, durante o pré-natal, se ela já apresenta escape fecal. É preciso buscar o equilíbrio e a razoabilidade nos procedimentos médicos e dialogar com a paciente para prevenir situações de confronto. “O parto virou show e é preciso explicar à gestante os riscos que ele apresenta”.

    Participaram do debate sobre episiotomia os seguintes debatedores: presidente: Flavia Bassanezi, vice-corregedora do Cremesp, conselheira responsável pela Câmara Técnica de Medicina Legal e Perícias Médicas do Cremesp e membro da Câmara de Ginecologia e Obstetrícia do Cremesp; moderador: Krikor Boyaciyan, conselheiro responsável pela Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia do Cremesp; debatedores: Angelo Vattimo, presidente do Cremesp, cirurgião geral e proctologista; Andreia Mariane de Deus, médica ginecologista e uroginecologista pelo Hospital das Clínicas da FMUSP, e cirurgiã ginecológica do Hospital São Luiz Itaim e Vila Nova Star; Isaac José Felippe Corrêa Neto, cirurgião geral e coloproctologista, e Flávia Ximenes, delegada do Cremesp e médica ginecologista.

    Assistência ao recém-nascido e o “minuto de ouro”

    A importância da reanimação neonatal do bebê, o clampeamento do cordão umbilical e a instilação de colírio para evitar conjuntivite gonocócica no primeiro minuto do nascimento do bebê, denominado “minuto de ouro”, foi altamente enfatizado no debate sobre “Controvérsias na assistência ao recém-nascido em sala de parto”. Segundo as médicas debatedoras, o atendimento ao parto por profissionais de saúde habilitados pode reduzir em 20-30% as taxas de mortalidade neonatal, enquanto o emprego das técnicas de reanimação resulta em diminuição adicional de 5-20% nestas taxas, levando à redução de até 45% das mortes neonatais por asfixia.

    Caso o recém-nascido não chore e/ou não respire ao nascer (2 em cada 10 RN, segundo estatísticas), a ventilação pulmonar deve ser iniciada nos primeiros 60 segundos de vida. A asfixia neonatal é responsável por cerca de 900 mil mortes a cada ano no mundo, sendo uma das principais causas de mortalidade neonatal. Após a reanimação, o clampeamento deve ser feito idealmente de 1 a 3 minutos após o nascimento, segundo a OMS. A instilação de colírio para evitar conjuntivite gonocócica também é fundamental, afirmaram as médicas. Porém, muitas gestantes querem recusar o procedimento por causa dos riscos que o nitrato de prata a 1% apresentava, embora, atualmente, esta substância tenha sido substituída por iodopovidona a 2,5%.

    Não há tempo de falar com a mãe durante os procedimentos de reanimação neonatal, é preciso conversar antes com a gestante e explicar a necessidade, se for o caso, de todos os procedimentos; por isso, o pediatra é fundamental durante o pré-natal, afirmaram as debatedoras. Além disso, é necessário explicar para toda a sociedade os riscos presentes no “minuto de ouro”, pois há uma pressão, por exemplo, para que a gestante tenha um contato imediato pele a pele com o bebê, que reforça o vínculo mãe-bebê, o que os debatedores consideram importante. “Mas, para evitar sequelas e riscos ao recém-nascido, nem sempre isso é possível”, afirmou-se. Uma das conclusões foi de que a comunicação é fundamental, uma vez que dificilmente uma mãe bem informada vai querer que seu bebê corra riscos fatais ou que possam deixar sequelas.

    Compuseram a mesa sobre a assistência ao recém-nascido: moderador: Elzo Garcia Junior, conselheiro do Cremesp, médico pediatra e responsável pela Câmara Técnica de Pediatria; debatedores: Marise Pereira da Silva, conselheira do Cremesp, médica pediatra e coordenadora da Câmara Técnica de Pediatria; Ruth Guinsburg, professora titular da Disciplina de Pediatria Neonatal da Unifesp, coordenadora do Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria e coordenadora científica da Rede Brasileira de Pesquisas Neonatais; Maria Fernanda Branco de Almeida, professora associada da Disciplina de Pediatria Neonatal da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e coordenadora do Programa de Reanimação Neonatal da Sociedade Brasileira de Pediatria; Celeste Gomez Sardinha, médica pediatra e neonatologista.

    Recusa terapêutica e implicações legais

    A necessidade de os médicos prevenirem-se para resguardar seus direitos no caso de a gestante dispensar procedimentos essenciais para a sua segurança e do bebê foi a tônica da mesa-redonda “Recusa terapêutica e suas implicações legais”. Cabe ao profissional da medicina a decisão final sobre qual procedimento é mais adequado no momento do parto e, caso a gestante ou algum familiar o recuse, ele deve fazer um registro do fato, com pelo menos uma testemunha. Se não for possível, o prontuário bem detalhado é uma prova idônea, afirmaram  os participantes do debate.

    Foi recomendado que os Conselhos de Medicina divulguem as evidências científicas dos procedimentos neonatais para toda a sociedade, “tão sonoramente quanto a contrainformação do outro lado”. Os obstetras, afirmou-se, precisam falar para fora, pois “estão fazendo uma lavagem cerebral nas mulheres”. Os direitos do feto, do bebê e das crianças também foram ressaltados, pois parece estar havendo um decréscimo deles. “O feto não é um apêndice da mãe”, afirmou a jurista Janaína Paschoal.

    Foi sugerido também que os médicos façam um Boletim de Ocorrência não criminal, de preservação de direitos, quando a paciente se recusar a fazer algum procedimento importante para a preservação de sua saúde e a do bebê. “É necessário resgatar a autonomia médica para que o profissional da medicina possa comandar o momento do parto, aplicando todo o seu conhecimento técnico e científico”, observou-se. Mais uma vez, o prontuário detalhado foi apontado como uma grande defesa do médico.

    Composição da mesa-redonda que abordou a recusa terapêutica: presidente: Angelo Vattimo, presidente do Cremesp, cirurgião geral e proctologista; moderador: Carlos Magno Michaelis Junior, superintendente da Procuradoria Jurídica do Cremesp; debatedores: Christianne Cardoso Anicet Leite, coordenadora das Delegacias do Interior do Cremesp, médica ginecologista/obstetra e membro da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia; Fernando Capez, jurista, procurador de Justiça aposentado, advogado e professor); Janaína Paschoal, jurista e doutora em Direito Penal, livre docente da USP); e delegado Tiago Fernando Correia, da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

    Quebra de confiança na relação médico-paciente

    Na mesa sobre “Raízes da quebra de confiança na relação da paciente com médicos e instituições”, o conselheiro do CFM pelo Rio de Janeiro, Raphael Parente, ressaltou que é difícil apontar o marco zero da demonização dos médicos obstetras. “Mas o marco regulamentar foi “a criação dos Centros de Parto Normal (CPN), em 1999, pelo então ministro da Saúde, José Serra, para estimular o parto vaginal a qualquer custo, dirigidas por enfermeiras obstétricas, sem a presença dos médicos especialistas; quando isso foi para o SUS bagunçou tudo de vez”. Depois, acrescentou, “a Agência Nacional de Saúde (ANS) regulamentou essa questão, com argumentos bizarros,  em conjunto com planos de saúde. Lamentavelmente, nossas sociedades de especialidade, não sei porque, juntaram-se a isso, inclusive a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)”. Agora, enfatizou, “tudo que o médico faz – cesárea, episiotomia, fórceps etc – é violência obstétrica. Nós fomos aceitando tudo isso, com pouquíssimas vozes contrárias. Mas não podemos nos calar, temos de combater tudo que vem desse outro lado, não podemos ter medo”. 

    As questões apresentadas no simpósio em momento algum estão contempladas na propaganda leiga para mulheres gestantes, acentuou a psiquiatra e vice-presidente do Cremesp, Maria Alice Saccani Scardoelli. “O que acontece com essa gestante/parturiente quando o resultado não é cheio de flores, borboletas, perfumes, azul-bebê, rosa nenê, amarelinho? Haverá momentos assim, mas não é tudo dessa maneira. E quando há óbito fetal ou perinatal, quem resolve isso? É muito importante que o médico informe a paciente sobre todas as questões envolvidas no parto, pois nem tudo é como nos sonhos”, alertou. “A saúde mental materna é determinante para o desenvolvimento fetal/infantil. Ansiedade, estresse e depressão são os quadros mais frequentes, porém podemos chegar à psicose, suicídio e infanticídio...”, observou a vice-presidente, ressaltando, em seguida: “em algum momento nós, médicos, com toda a tecnologia a nosso dispor, deixamos de ocupar alguns espaços importantes e que devemos ocupar para maior segurança à saúde da população”. 

    Para o conselheiro do CFM por São Paulo, Francisco Eduardo Cardoso Alves, “há uma falsa dicotomia entre o parto ´humanizado´ e o atendimento médico baseado em evidências, que faz com que as pacientes optem por práticas inseguras, que podem levar a complicações evitáveis”. Segundo afirmou, a exploração da vulnerabilidade das gestantes gera uma indústria oportunista, com práticas e terapias não regulamentadas, que priorizam o lucro em detrimento do cuidado real à saúde da paciente.

    Cardoso Alves acrescentou que para combater esse oportunismo e a venda de falsas promessas é necessário a regulamentação de práticas sem o devido respaldo técnico, a educação da população e a reafirmação do papel do profissional médico, pois a desconstrução da imagem médica gera consequências graves. “Fiscalização, fortalecimento da imagem médica, incentivo a debates e parcerias estratégicas com sociedades médicas para desenvolver diretrizes baseadas em evidências também são essenciais para garantir partos seguros e verdadeiramente humanizados”, concluiu o conselheiro do CFM.

    O debate deste tema teve a participação dos seguintes profissionais: presidente: Angelo Vattimo, presidente do Cremesp, cirurgião Geral e proctologista; moderador: Elzo Garcia Junior, conselheiro do Cremesp, médico pediatra e responsável pela Câmara Técnica de Pediatria; debatedores: Christianne Cardoso Anicet Leite, coordenadora das Delegacias do Interior do Cremesp, médica ginecologista/obstetra e membro da Câmara Técnica de Ginecologia e Obstetrícia; Raphael Câmara Medeiros Parente, conselheiro Federal pelo Estado do Rio de Janeiro e médico ginecologista; Maria Alice Saccani Scardoelli, vice-presidente do Cremesp; e Francisco Eduardo Cardoso Alves, conselheiro representante de São Paulo no CFM, vice-corregedor do CFM e médico infectologista.

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    Fotos: Osmar Bustos


     


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