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Edição 21 - Outubro/Novembro/Dezembro de 2002

ENTREVISTA

Lygia da Veiga Pereira

Células-tronco: a Terapêutica do Futuro Próximo

“Caso os resultados sejam tão positivos quanto promissores, a transferência de células-tronco para regenerar tecidos estará incorporada à prática médica dentro de cinco ou dez anos.”
Lygia da Veiga Pereira

A pesquisadora Lygia da Veiga Pereira gerou o primeiro camundongo transgênico do Brasil. Hoje, seu laboratório na Universidade de São Paulo (USP) disponibiliza metodologia a outros grupos de pesquisadores, além de desenvolver experimentos com a alteração de genes em camudongos e o uso terapêutico de células-tronco. Formada em Física, Lygia mudou de rumo quando viu o potencial que despontava no campo da Biologia devido às pesquisas do Genoma, tornando-se PhD em Genética Humana. Nesta entrevista a Ser Médico, fala do impacto de seu trabalho sobre a saúde e os valores religiosos, faz críticas às normativas em andamento e projeta o futuro da terapia com células-tronco.


Ser Médico: Como funciona a sua pesquisa com camundongos com genes alterados?
Lygia da Veiga Pereira: Montamos uma metodologia para duas vertentes: a primeira para estudo de doenças humanas a partir de modelos animais, para entender melhor a progressão e testar novas terapias. Nossa metodologia permite criar camundongos com qualquer mutação de gene. Estamos estudando uma doença do tecido conjuntivo, chamada Síndrome de Marfan, que tem uma manifestação cardiovascular importante, na qual os indivíduos morrem de ruptura da aorta. Criamos um camundongo com a mesma mutação que reproduz a doença para estudar todos os eventos que levam a essa ruptura. No ano passado, anunciamos a produção do primeiro “camundongo nocaute”; usamos esse nome porque nocauteamos um gene. Foi a primeira vez que se conseguiu fazer isso no Brasil. Uma das nossas funções agora é disponibilizar essa ferramenta para grupos de pesquisa estudarem outras doenças genéticas. A outra função desses modelos, uma vez que o Projeto Genoma Humano permitiu conhecermos 30 ou 40 mil genes, é entender o papel de cada um deles para o funcionamento do organismo. Uma forma de se conseguir isso é fazer um mutante que não tenha um determinado gene para ver o que acontece com ele.

SM: Suas pesquisas incluem o uso de células-tronco como terapia? Como elas podem ajudar no tratamento de doenças humanas?
Lygia: Existem duas categorias de células-tronco: as embrionárias e as adultas. As primeiras são derivadas de um embrião de cinco dias. Nesse estágio, um embrião é um conglomerado de 100 a 200 células que vão dar origem a todos os tecidos do indivíduo. Modelos animais já provaram que é possível cultivar e multiplicar essas células em laboratório, com capacidade para se diferenciar em diversos, senão todos, os tecidos do corpo. Podemos multiplicá-las quase que indefinidamente no laboratório. Uma célula-tronco embrionária diferenciada em células hepáticas pode ser transplantada em um indivíduo com cirrose para regenerar seu fígado. Pode ser diferenciada em células do músculo cardíaco, regenerando-o para revas-cu-larizar o coração de uma pessoa que tenha insuficiência cardíaca. Já as células-tronco adultas são en-contradas no corpo da pessoa; as mais pesquisadas são as da medula, que dão origem a todos os tipos de células presentes no sangue. Elas parecem ter capacidade de diferenciação muito mais ampla do que imaginamos, sendo uma nova alternativa para transplantes, mas ainda existem limitações.

SM: Que tipo de limitações?
Lygia: Elas são muito raras. De uma amostra da medula óssea ou mesmo do sangue do cordão umbilical, uma proporção muito pequena são, de fato, células-tronco. Ainda temos dificuldades para multiplicá-las em laboratório e não temos certeza de que podem ser diferenciadas em qualquer tipo de célula, por exemplo, em neurônios.

SM: A célula-tronco embrionária, então, é melhor opção terapêutica que a adulta?
Lygia: Pelo menos por enquanto — porque a pesquisa está em pleno progresso —, a plasticidade da embrionária é muito maior do que a adulta. Ainda não sabemos a real capacidade de se produzir uma célula de pâncreas, a partir de uma célula-tronco da medula, mas da embrionária já sabemos. Em 1999, foram estabelecidas as primeiras linhagens de células-tronco embrionárias humanas e, desde então, foi possível diferenciá-las em células de sangue, em outras que produzem insulina, neurônios, endoteliais...

SM:Qual a diferença entre clonagem terapêutica e o uso de células-tronco?
Lygia: As pessoas confundem muito o uso dessas células com clonagem terapêutica. Até mesmo o texto do Projeto de Lei so-bre clonagem mistura os con-ceitos. Na clonagem terapêutica, faz-se uma célula-tronco embrionária geneticamente idêntica à pessoa que precisa dela, a partir da coleta de qualquer célula do próprio indivíduo — de pele por exemplo — que em seguida é inserida em um óvulo como se originasse um clone. Quando esse embrião chega ao estágio de blastocisto, no laboratório, ao invés de transferi-lo para o útero, que configuraria clonagem reprodutiva, ele passa por um procedimento especial de extração de células-tronco embrionárias geneticamente idênticas ao doador. Qualquer tecido gerado a partir dessa célula-tronco pode ser transplantado no próprio indivíduo sem risco de rejeição. Isso seria, rigorosamente, clonagem terapêutica. Acredito que fazer a própria célula-tronco embrionária por meio da clonagem é a melhor solução. A outra opção seria modificar geneticamente essas células para não reagirem imunologicamente, mas estaríamos introduzindo variáveis desconhecidas.

SM: Ao produzir uma célula-tronco do próprio corpo para refazer um órgão ou um tecido, há riscos de se reproduzir a doença?
Lygia: Sem dúvida, não vou conseguir regenerar o fígado de uma pessoa portadora de uma doença genética que afeta esse órgão, a partir de sua própria célula-tronco — embrionária ou adulta — porque tem tal defeito. Algumas doenças cardíacas, por exemplo, têm componentes genéticos, mas não são determinantes, permitindo que a pessoa possa utilizar suas próprias células para regenerar seu coração. Doenças degenerativas do sistema nervoso, como Alzheimer ou Parkinson, têm componentes genéticos importantes, mas ao renovar neurônios, talvez se possa suprir a necessidade fisiológica, pelo menos por um tempo. Já um trauma da medula óssea não tem componente genético. Porém, se retirarmos qualquer célula de uma criança com distrofia muscular, que não produz uma proteína importante para a integridade do músculo, a terapêutica não vai funcionar.

SM: A sra. mencionou que o Projeto de Lei usa conceitos incorretos sobre a clonagem terapêutica.
Lygia: No texto do Projeto de Lei sobre reprodução assistida há o seguinte artigo: “A experimentação no domínio da engenharia genética que vise à manipulação do genoma humano de células somáticas — que são células adultas —, no todo ou em parte, é permitida para fins de clonagem terapêutica, sendo vedada a que tenha fins reprodutivos”. Por esse texto, entendo que posso coletar uma célula adulta e fazer clonagem terapêutica com ela, ou seja, colocar dentro de um óvulo e fazer um embrião para retirar as células-tronco embrionárias. Mas, provavelmente, quer dizer que posso usar uma célula adulta para retirar um tecido. O autor está chamando de clonagem terapêutica, o que na verdade é extração de uma célula-tronco adulta da medula. A nomenclatura é fundamental, célula-tronco adulta não tem nada a ver com clonagem. Provavelmente, essa confusão de conceitos vai demandar outra lei que proí-ba a manipulação de gametas humanos. Esse Projeto de Lei deveria começar por definições. Ao usar o termo “clonagem terapêutica”, o autor deve explicar o que quer dizer com isso.

SM: Mas existe um entendimento de que a lei que está sendo preparada pretende coibir o uso de células-tronco embrionárias, causando, inclusive, reação da comunidade científica.
Lygia: A legislação que está sendo elaborada prevê a proibição da clonagem reprodutiva, o que é positivo. Em relação ao uso de células-tronco de embrião humano, discute-se uma moratória com a seguinte idéia: “vamos esperar para ver se as células-tronco adultas vão funcionar. Se não funcionarem, discutiremos o uso do embrião”. É um absurdo! É ótimo se não é você que está precisando daquele transplante para salvar sua vida e tem todo o tempo do mundo para esperar. O momento é de abrir o leque de pesquisas e continuar trabalhando com os dois sistemas. Não é porque há esperança de que a célula-tronco adulta dará conta do recado, que não precisamos da embrionária. Se a adulta provar ser tão maleável quanto a embrionária, maravilha. É muito melhor trabalhar com ela por ser geneticamente idêntica ao paciente, enquanto a embrionária — derivada de um embrião qualquer — pode não ser compatível com o indivíduo que vai receber um transplante.

SM: O que as células-tronco de embriões de cinco dias representam científica e moralmente?
Lygia: Para um leigo, um embrião humano é um feto com dedinho, coração batendo, mas um embrião de cinco dias, mesmo sendo gerado naturalmente, é um conglomerado amorfo de 100 a 200 células. A probabilidade de chegar a ser uma criança é de 20 a 30%. Se esse conglomerado é ou não uma vida, moral ou eticamente, é uma questão que varia de religião para religião. Na moral católica é uma vida, segundo a judaica, o embrião só é considerado uma vida depois de implantado no útero materno, já na muçulmana, parece que é considerado uma vida só depois do terceiro ou quarto mês. Essa definição é muito subjetiva. Um conceito interessante é o do potencial de vida. Um embrião de cinco dias tem um potencial de 20% de vida, mas quando é implantado no útero materno, o potencial aumenta bastante. Dessa forma, nem toda vida é igual.

SM: Nesse estágio dos avanços científicos, é possível conciliar valores morais e ciência?
Lygia: Depende da moral de que se está falando, pois há algumas não razoáveis. Com valores fundamentalistas e extremos, não tem jeito. Usar camisinha é contra a moral católica, mas respeitar esse valor seria desprezar os riscos à saúde individual e coletiva. Os cientistas sérios não desprezam valores morais e, às vezes, discutem muito esses dilemas. Cientistas sérios não realizam experimentos à revelia da moral, mas de vez em quando aparece um louco que o faz, não só da moral, mas de conceitos básicos da ciência.

SM: Quais são as perspectivas das células-tronco para as pessoas idosas e quando seu uso terapêutico será uma realidade?
Lygia: O uso das células-tronco permitirá um aumento de sobrevida, pela regeneração de órgãos e tecidos. Elas trarão um aumento significativo da saúde do indivíduo, para que ele viva mais e melhor. Caso os resultados sejam tão positivos quanto promissores, acredito que a transferência de células-tronco para regenerar tecidos estará incorporada à prática médica dentro de cinco ou dez anos. É claro que para isso é preciso saber isolar as CT e multiplicá-las no laboratório.

SM: Com os avanços promovidos pelo Projeto Genoma Humano seria necessário dar mais ênfase às disciplinas biológicas no ensino médico?
Lygia: Os estudos básicos estão sempre por trás de qualquer avanço na medicina. Um médico pode escolher ser só um administrador de terapias, sem se aprofundar nos princípios básicos das mesmas ou um profissional diferenciado que se interessa pela base das terapias, podendo até ajudar no desenvolvimento das mesmas.

SM: Dentro da USP, há interação entre a biologia e a medicina nesse sentido?
Lygia: Há uma grande tentativa, principalmente nos primeiros anos do curso de medicina, de se atrair os alunos para pesquisa básica.

SM: Há interesse do setor privado nessas pesquisas da área biológica?
Lygia: Nos Estados Unidos, muitas empresas trabalham nessa área. No Brasil, ainda não temos uma tradição de investimento empresarial em áreas biotecnológicas. Uma parceria entre o público e o privado pode fazer com que os conhecimentos gerados pela universidade revertam-se em produtos que beneficiem a população de forma mais rápida e eficiente. Às vezes, o setor privado agiliza o processo, enquanto a pesquisa na universidade corre o risco de ficar restrita ao meio acadêmico.

SM: O apoio que o setor público dá às pesquisas é satisfatório? Essas pesquisas são caras?
Lygia: Não chega a ser das mais caras. Comparada à pes-quisa de um físico nuclear, que precisa de um acelerador de partículas, é baratíssima. Em nosso laboratório, não temos aparatos tecnológicos sofisticados ou complexos; são basicamente equipamentos para cultura de células, mas precisamos de mão de obra muito especia-lizada e qualificada. O conhecimento das pessoas é o que mais precisamos. Em São Paulo, a Fapesp dá apoio a esse tipo de pesquisa de maneira responsável e estável, em contrapartida exige um trabalho sério que apresente resultados. É importante ter um financiamento consistente, porque ninguém consegue desenvolver um trabalho sério nessa área, a longo prazo, se tiver dinheiro só por dois anos.

SM: A sra. também é colaboradora de um projeto com clones bovinos.
Lygia: É um projeto em conjunto com um grupo dos Estados Unidos que tenta identificar molecularmente porque a clo-nagem re-pro-dutiva é um desastre, já que sua eficiência é bai-xísssima, de 1%. A clonagem parte de uma célula que já tem identidade própria que se repro-grama para atuar co-mo a primeira célula de um embrião. Nessa reprogramação, várias informações têm de ser apagadas e outras têm de ser mantidas na célula. A clonagem de mamíferos é um processo que não existe na natureza e que estamos fazendo “na marra”, mas está dando errado porque a reprogra-mação de células é extremamente delicada. Estudamos, em particular, o cromossomo “x” e constatamos várias alterações em clones mortos, ou naqueles perdidos ao longo da gestação. Isso demonstra que a reprogramação deve estar causando todos esses problemas. Mesmo os clones normais de camundongos vivem menos e desenvolvem obesidade.

SM: Já foram feitas experiências com filhos de clones concebidos por meio natural, por fecundação?
Lygia: Segundo artigos científicos, em experimentos feitos com camundongos, os filhos naturais de clones parecem ser mais normais do que os pais.

SM: A sra. deu palestras técnicas para o elenco da novela “O clone” da Rede Globo. Qual é sua avaliação sobre o tratamento fictício dado às experiências na área genética?
Lygia: Na verdade, dei duas aulas sobre clonagem, provando por “a” mais “b” porque não se deve fazer um clone humano na vida real. Não tinha a menor pretensão de que eles mudassem o enredo da novela, já que o nome era “O clone”, mas falei o seguinte: “já que vocês vão fazer um clone, espero que quando não precisarem mais dele, pelo menos, que ele morra de alguma doença degenerativa”. Isso pode gerar uma distorção da realidade, porque, especialmente no Brasil, há mais gente vendo a novela do que o jornal que anuncia que os verdadeiros clones têm defeitos e estão morrendo. Claro que não se pode pretender que o entretenimento tenha compromisso com a realidade, a graça é a fantasia. Mas é diferente de mostrar o homem voando no filme... É óbvio que o homem não voa.

*Lygia da Veiga Pereira é física e Ph.D em Genética Humana pelo Muont Sinai Medical Center, em Nova Iorque, docente do Departamento de Biologia e do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da USP. É autora dos livros “Seqüenciaram o Genoma Humano. E Agora?” e “Clonagem, fatos e mitos”, Editora Moderna.

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